Onde comprar "Os meninos da Rua Beto"



Divirta-se com um livro diferente de todos os que você já leu!

"OS MENINOS DA RUA BETO"

acesse:

http://inquietovagalume.blogspot.com.br/p/os-meninos-da-rua-beto.html

.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Cuidadora

 Vem. Me dá a mão. Devagarinho. Cuidado pra não tropeçar. Já estamos chegando. Tá vendo aquela luz? É ali. Mais um pouco. Se apoia em mim. Pronto, a gente chegou.

 Agora o senhor tem que entrar. Não precisa ficar com medo não. Vão lhe cuidar muito bem. Melhor do que eu, pode acreditar. 

Não fica triste. Um dia venho lhe encontrar, eu prometo.

Tchau. Fica com Deus, pai.



sexta-feira, 26 de maio de 2023

Confissões

Padre Bento andava chateado com o estado deplorável da sua igrejinha, tão carente de limpeza e arrumação.

Foi quando recebeu no confessionário a dona Luzia, mulher do seu Januário.

Envergonhada, ela pediu perdão por um pecado muito feio que havia cometido. Jurou que não queria fazer aquilo, mas acabou fazendo, e precisava urgentemente se penitenciar.

Padre Bento já havia se deparado com pecados piores, porém mostrou-se estarrecido e concordou que um ato de tal gravidade exigia reparação excepcional. Passou-lhe como penitência a limpeza da igrejinha, além da reza de dez padrenossos.

Dias depois, contemplando o primor do trabalho de dona Luzia --- o esforço tinha sido proporcional ao sentimento de culpa ---, ele se lembrou da triste condição da casa paroquial. Teve outra boa ideia.

O único problema era descobrir como fazer chegar às mãos do seu Januário, anonimamente, uma daquelas revistas que ele guardava escondidas sob o colchão, havia tantos e tantos anos...



quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Quem Deus ajuda?

Oi, mãe.  Olha eu aqui. A senhora já sabe, né? Quando eu apareço assim, de supetão, é porque tenho alguma coisa pra contar. Ou pra desabafar. 

Primeiro um copo d’água. Não precisa café não, tá bom assim. Se prepara, mãe. O caso de hoje é desabafo mesmo. Faz dias que isso não sai da minha cabeça. Preciso colocar pra fora. Então lá vai.

Tem a ver com aquele ditado que a senhora sempre fala, “Deus ajuda a quem cedo madruga”. Então. Eu sigo esse conselho desde que me entendo por gente, e não me arrependo.  Madrugar é meu costume. Quando arranjei o primeiro emprego de carteira assinada, pensei: “é aqui que vou ficar até a aposentaria”. Por isso chegava antes da hora, pegava os meus apetrechos e já começava a trabalhar. Eu era faxineiro, lembra? Mas tinha jeito com eletricidade e também consertava coisas, então fui promovido pra ajudante geral. Daí comecei a prestar atenção no serviço do pessoal do escritório. Perguntei como fazia pra trabalhar ali. Falaram que eu não podia porque não tinha estudo. Arranjei escola noturna e fui atrás do diploma, isso a senhora se lembra porque me esperava toda noite com a janta na mesa, mesmo eu chegando tão tarde.

Tirei o diploma e pensei que já podia mudar de função. Até mudei, mas não foi bem do jeito que eu queria. Me botaram pra fazer um monte de coisa na rua: buscar e levar documento, resolver assunto em banco e cartório, falar com fornecedor, e o que mais aparecesse.

Nessa época me veio uma ideia: prestar muita atenção em tudo e aprender o máximo para conhecer a empresa por completo. Meu pensamento era: quem sabe um dia eles reconhecem o meu valor e me dão uma oportunidade no escritório.

Como a senhora sabe, esse dia chegou. Mandaram embora um funcionário e, em vez de pegar um novo, me colocaram no lugar.

Olha, eu fiquei feliz que só vendo. E continuei com a minha ideia de aprender cada vez mais pra poder subir de cargo. Disseram que era preciso faculdade, então fui fazer a faculdade. Dessa vez quem me esperava tarde da noite com a janta em cima da mesa era a minha mulher, abençoada seja.

Então, mãe. Tirei o diploma da faculdade. Aprendi tudo o que era preciso. Não faltava mais nada, a não ser a vaga de supervisor, era essa que eu queria.

Mês passado o supervisor morreu, Deus o tenha. Era bem idoso e estava doente. Coisas da vida. Logo começaram a comentar quem ia ocupar o cargo. A maioria achava que só podia ser eu, antigo de casa, conhecia o serviço de cabo a rabo, e além do mais, funcionário de confiança.  

Sabe o que aconteceu, mãe? Isso tá fazendo uma semana. Convocaram a gente pra uma reunião. Meus colegas já foram me dando os parabéns antes mesmo do anúncio.

Pois não é que apresentaram lá um molecote todo engomadinho que nunca ninguém tinha visto antes, e disseram que era o novo supervisor?

Ficou todo mundo de boca aberta sem entender. Pior ainda, mãe: me chamaram e disseram que era pra eu ensinar o serviço pro molecote.

Ele não é má pessoa, parece esforçado e me trata com respeito, reconheço.

Mas isso não foi justo, mãe. A gente descobriu que é filho de um amigo do diretor, e nem acabou a faculdade ainda.

Tanto que madruguei, tanto que me esforcei, confiando que Deus ia me ajudar… Não me arrependo de ter seguido o seu conselho, mãe, porque é o caminho certo pra se tomar na vida, mas tenho pensado muito numa coisa. Sabe a conclusão que tirei? É triste, mas não tenho outro modo de encarar isso. Não devia ser assim, mas é. Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga.

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Fantasia

Gabi passa o dia todo sozinha em seu apartamento. Trabalha para uma editora fazendo leituras críticas e revisões, presta serviços como "ghost writer" e o que mais aparecer. Dentro desse pequeno espaço sente-se feliz com a liberdade de se dedicar ao que gosta e ser quem realmente é.

Vaidosa, está sempre arrumada como se esperasse visita. Mas não, é apenas o prazer de se sentir bem cuidada e elegante.

Porém o trabalho que ama não é suficiente para pagar todas as contas. Em certos dias da semana vê-se obrigada a deixar o seu refúgio por algumas horas e exercer outra função.
Nesses dias, o cair da tarde traz consigo uma tristeza que já se tornou familiar. O jeito é enfiar a tristeza no saco e enfrentar a realidade.

Tira a maquiagem, deixa de lado as sandalinhas de salto, os brincos e as pulseiras; livra-se da roupa habitual e coloca a fantasia. Se disfarça tão bem que ninguém suspeitaria quão penoso lhe é fazê-lo.

Ao sair sempre cumprimenta com um sorriso o porteiro da noite. Este lhe responde muito solícito e amável:
--- Boa noite, professor Gabriel. Boas aulas! Vai com Deus!



sábado, 17 de abril de 2021

Tardígrado

Ela voltava da horta quando viu, em frente ao seu barraco, um jovem bonito, bem vestido, em atitude de expectativa. 

--- Doutora Solange? A senhora é a doutora Solange, não é?

Medo, contrariedade, surpresa e estranhamento: tudo isso se mostrou em seu semblante. Aproximou-se, depositou no chão o cesto com algumas raízes de mandioca e uma abóbora pequena.

--- Dotora? Que dotora? Por acaso tenho cara de dotora, moço?  

--- Eu sei que é a senhora. O meu pai reconheceu a senhora numa foto.

--- Que é que você tá falando,  menino? Foto? Que foto? Nunca tirei foto na vida.

--- Vou lhe explicar direitinho. Fui com o meu pai a uma exposição de imagens, e quando ele viu a sua, reconheceu na mesma hora!

--- Não tô entendendo nada do que você tá falando, moço. Vorta pra estrada e continua percurando porque você errô de endereço. 

Ele olhou longamente aquela mulher de meia-idade, mal vestida, a pele curtida de sol, o cabelo escondido sob um pano grosso. Não desistiu.

--- Depois que o meu pai lhe reconheceu, eu fui falar com o fotógrafo. Foi assim que descobri o seu paradeiro. Ele disse que enganou a senhora. Que a senhora não queria, mas ele deu um jeito e fez a foto escondido. 

Uma pausa. Olhou para o chão. Voltou a encará-la e falou devagar:

--- Parece até que foi coisa do destino, mãe. 

A última palavra mexeu com ela. 

--- Mãe? Essa dotora era sua mãe?

--- Era não. É. Quando a senhora fugiu eu tinha só dois anos, por isso não me reconheceu.

A mulher se mostrou emocionada.

--- Não tenho filho, moço. Deus lhe ajude a encontrar a sua mãe. É triste filho sem mãe. 

--- Olha, eu só quero que a senhora saiba que não tem mais perigo, já pode voltar. Meu pai me contou que a senhora era cientista e fez uma descoberta muito importante, mas ficou com medo que caísse em mãos erradas e apagou tudo. 

--- Que é que você tá falando, menino? Num tô intendendo.

Ele ignorou a interrupção. 

--- Daí o chefe do seu grupo de pesquisa quis lhe obrigar a refazer todos os passos da descoberta, porque o resultado valia muito dinheiro. A senhora fugiu para não ser obrigada a revelar os detalhes, e também para proteger a sua família. 

Ela ficou olhando o jovem. Agora a expectativa era dela.

--- Mas esse cara já morreu, e ele era o único que sabia do estudo. Pode ficar tranquila, ninguém mais vai lhe perseguir. Volta comigo e fica com a gente de novo. 

Ela estava quase chorando, mas se segurava.

--- Não entendi nada do que você falou, menino. Mais é muito triste um filho ficá sem a mãe. Inda mais se ela fugiu. Vô rezá pra você incontrá ela, viu?

Ele, cabisbaixo, parecia decepcionado. O pai lhe garantira que a mulher da foto era a sua mãe, sem a menor sombra de dúvida. Talvez fosse, mas nesse caso a negação revelava um grande pavor. De quê? O inimigo estava morto. Ninguém mais sabia da descoberta. Medo de quê? Não fazia sentido. Mais provável que ele estivesse ali fazendo papel de bobo. 

--- Então a senhora me desculpe. Pensei mesmo que tinha encontrado a minha mãe. Pelo visto, o meu pai se enganou. Fique com Deus, então. Está precisando de alguma coisa? O que posso fazer pela senhora?

--- Não, menino. Não tô percisando de nada não. Vai em paz. Tomara que as coisa se ajeite pra você. Vô rezá pra Deus te ajudá. 

Quando o jovem entrou no veículo e rumou para a estrada ela ficou acenando adeus até ele desaparecer na curva. Depois entrou no barraco e sentou no banco perto da janela.  Ficou olhando para as galinhas ciscando no terreiro, o cesto esquecido no chão. Pensava na vida... 

* * *

Afinal, quem era --- ou tinha sido --- essa doutora Solange?

Era médica, trabalhava em pesquisa do câncer e descobriu acidentalmente, por meio de um estudo com tardígrados, uma droga que embora falhasse na cura daquela doença produzia rejuvenescimento nos organismos. A fonte da juventude. 

Assustada com as implicações de tal descoberta, resolveu mantê-la em segredo até decidir o que fazer. Não conseguiu. Tendo se negado a compartilhar os detalhes da pesquisa com o chefe do laboratório, sofreu sequestro e tortura. Nessa altura já tinha destruído tudo: anotações, arranjos experimentais e substâncias químicas. Não revelou nada. Conseguiu fugir, mas teve que deixar para trás sua família e sua vida.

***

Finalmente levantou-se do banco a mulher de meia-idade, mal vestida, a pele curtida de sol, os cabelos escondidos sob um pano grosso.  Foi ao terreiro e recolheu o cesto com as raízes de mandioca e a abóbora pequena. 

Antes de voltar para dentro ficou uns instantes contemplando o horizonte. Pra onde, agora? Tantos anos aperfeiçoando seu novo eu, tentando incorporar aquela personagem.

Pra onde, agora? Qualquer lugar, menos a sua antiga vida. Como poderia contar ao filho que o chefe estava morto porque ela o matara na tentativa de fuga? E como poderia revelar a ele que o seu próprio pai havia facilitado o sequestro depois de aceitar um acordo com o chefe?

Não, impossível voltar. O inimigo ainda estava à espreita.

***

"Tardígrados são animais microscópicos da família dos artrópodes. Conhecidos popularmente como ursos d'água, são muito resistentes: podem sobreviver em temperaturas variando desde duzentos graus negativos até cento e cinquenta positivos. Suportam pressões de seis mil atmosferas e radiações mil vezes maiores do que um ser humano pode aguentar. Algumas espécies brilham no escuro."



sábado, 10 de abril de 2021

"Turning point"

Mil vezes ele perguntou o que havia lá pra cima. Mil vezes lhe responderam que tudo, tanto acima quanto abaixo, era exatamente igual àquele lugar onde estavam. Mas ele nunca acreditou. Alguns seres apareciam ali ocasionalmente; eram perseguidos e mortos para se transformarem em alimento. Vinham sempre do lado de cima e nunca do lado de baixo. Não podia ser tudo igual. Quando chegou à idade adulta a dúvida foi esclarecida. Um ancião o chamou e, falando em voz baixa, contou que eles próprios tinham vindo do lado de cima e para lá deveriam voltar quando o perigo tivesse passado. Isso havia acontecido há muito tempo; certamente já era chegada a hora. Todos ainda tinham muito medo e precisavam de alguém com coragem para ir e depois retornar a fim de convencê-los. Em seguida o ancião lhe deu instruções, entregou-lhe uma tocha apagada, ensinou como acendê-la e recomendou que deveria ser acesa apenas quando sentisse uma forte lufada de ar frio. Assim ele empreendeu a jornada. Levou mais tempo do que havia imaginado: a subida era longa, íngreme, escura, por vezes escorregadia. Sua persistência e disciplina foram recompensadas: enfim chegou a um lugar amplo e fresco onde a luz da tocha lhe revelou o mundo lá fora. O que ele viu à sua frente lhe deu instantaneamente a certeza de que jamais iria voltar. 




domingo, 21 de março de 2021

Visita à velha senhora

Minha bisavó tem cento e um anos. Ontem fui visitá-la. Como sempre, não me reconheceu. Mas sorriu e estendeu a mão. Sentei-me à cabeceira da cama e ficamos de mãos dadas, sem necessidade de conversar. Ela alterna períodos de longo silêncio com outros dedicados a narrativas da sua vida. 

Alguns minutos se passaram até que virou a cabeça na minha direção e começou a dizer que costumava ficar feliz quando a sua mãe lhe penteava o cabelo e prendia o rabo-de-cavalo com uma fita azul. Era uma fita de seda azulzinha como o céu. Assim, de cabelo arrumado, ela ia para a escola. Essa escola ficava bem no meio da plantação de café. Grande e bonita, cheia de crianças, e tinha muitas gaiolas de passarinho dependuradas nas paredes. Na hora do lanche ela repartia o pão e a goiabada com os coleguinhas mais pobres que não levavam nada pra comer. A mãe se admirava com o seu apetite quando chegava e ia almoçar. É que ela às vezes dava o lanche inteiro para as outras crianças e por isso ficava com fome. Mas não contava nada porque tinha medo de levar bronca.

Dito isso, caiu em silêncio. Fiquei quieta segurando a sua mão, pensando na história de vida daquela mulher. História conhecida por todos nós, seus descendentes. 

Ela foi a única menina de uma família de imigrantes italianos. Nasceu logo depois do desembarque. Sua mãe morreu no parto. Cresceu entre irmãos bem mais velhos, e aos treze anos foi dada em casamento a um homem que nunca tinha visto, com o dobro da sua idade. Meses depois deu à luz uma criança que viveu poucas horas. A partir daí, a cada ano e meio em média, tinha um novo bebê. Do total de onze, sete sobreviveram. Após o décimo primeiro nascimento o meu bisavô teve a decência de morrer. Deus sabe como ela fez para criar sozinha aqueles filhos. A pobreza e o analfabetismo os acompanharam pelo resto da vida, mas todos chegaram à idade adulta sem nunca se desviar do bom caminho.

Um fato marcante ainda lhe aconteceria: a alfabetização através do neto mais velho, que vem a ser o meu pai. Uma mudança profunda em sua qualidade de vida: passou a ler tudo o que lhe caía nas mãos e tinha preferência por romances românticos, aqueles cheios de adjetivos e com finais felizes. Só parou de ler quando foi vencida pela senilidade.

Estava eu nesses pensamentos quando entrou a cuidadora. Sorriu com expressão de cumplicidade e teve a delicadeza de fingir não ter visto as lágrimas tremulando nos meus olhos.

--- Quietinha, né? Tem estado bem quietinha hoje.

--- Acabou de me contar a história da escola no meio do cafezal.

--- Eu gosto dessa história. Mas agora ela inventou uma nova, muito bonita. Acho que é a mais bonita de todas. Você também vai gostar.

--- Sobre o quê?

--- Sobre como foi lindo e romântico o dia em que o namorado de infância, seu bisavô, a levou para passear numa campina toda florida. Assim que o sol começou a se por, o céu ficou mais bonito e a brisa mais fresca. Foi então que ele se ajoelhou e pediu a mão dela em casamento.

Olhei para a face tranquila da minha bisa. Estava fitando o nada, totalmente em paz. Talvez sonhando com aquela tarde encantada na companhia daquele namorado afetuoso. 

A vida não é justa. Ela merecia ter sido feliz. Apertei mais a sua mão e, finalmente, as lágrimas relutantes escorreram dos meus olhos.