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"OS MENINOS DA RUA BETO"

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domingo, 29 de março de 2015

Adeus à Ilha das Flores

O que faz o jovem Melker Öberg lá no meio da campina, deitado sobre a relva, em plena meia-noite?
Está esperando o mundo acabar.
Ele esteve até as 11 da noite, hora do por-do-sol de verão, orando em companhia dos tios e primos. Agora que anoiteceu e todos foram descansar pela última vez em suas camas, ele resolveu esperar o fim do mundo ali, em contato com a natureza, a fim de usufruir plenamente o que está para acontecer. Seja para o bem, seja para o mal.
Vildablommorö é a ilha das flores silvestres. Por isso Melker está rodeado de flores. A luminosidade crepuscular vai durar até as 5 da manhã, hora do nascer do sol. Não é possível ver as estrelinhas mais fracas. Mesmo assim o céu está bonito, o ar está fresquinho, a grama está macia.
Ele abre os braços, fica olhando o céu e pensando em Hedvig Falk. Se ela fosse sua namorada estaria aqui com ele, de mãos dadas, esperando juntos o fim do mundo. Mas ela não retribui seus olhares, então como pode ele se aproximar e conversar? Uma pena que acabe tudo assim, cada um no seu canto, separados para sempre.
Seria preferível que Hampus Holmgren não tivesse voltado com a notícia e que ninguém ficasse sabendo do que estava para acontecer. Acabar tudo de surpresa seria melhor.
O velho comerciante viajava regularmente a Estocolmo, onde vendia os produtos da ilha e providenciava as encomendas. Desta vez voltou com uma novidade. Ouviu de um pastor, durante o culto em um templo da cidade, que um cometa se aproximava da Terra. Não ia colidir, mas a sua incomensurável cauda tóxica envenenaria toda a atmosfera. A data para o acontecimento era entre hoje e amanhã, provavelmente de madrugada. Todos morreriam asfixiados, não havia como escapar.
Melker pensava que era uma sorte os seus pais terem falecido anos atrás. Não suportaria vê-los passar por essa agonia. Fechou os olhos levemente mas abriu depressa, não queria dormir. Queria ver tudo acontecer. Será que o ar se tornaria brilhante, cheio de fagulhas? Talvez escuro como fumaça? Talvez opaco e esbranquiçado como vapor?
Fechou os olhos de novo, para pensar em Hedvig. Foi quando sentiu-se subindo ao espaço. Com toda a leveza. Flutuando. Morrer era assim tão suave?
Acordou de repente com o sol no rosto. Olhou em volta. Estranho, tudo estava normal. O mundo não havia acabado.
Voltou para casa e descobriu que todos estavam muito zangados com Hampus Holmgren por ter pregado uma peça de tão grande mau gosto. Quase toda a população da ilha (umas duzentas pessoas) foi bater à porta do comerciante.
— Vocês estão zangados comigo porque o mundo não acabou? Não tenho culpa! Foi o pastor quem disse!
Melker achou engraçado as pessoas estarem irritadas por não terem morrido. Ele mesmo estava irritado, mas era por ter sido tão ingênuo. Tomou uma resolução. Não queria mais viver assim longe de tudo, sem conhecimento das coisas, tornando-se vulnerável a qualquer bobagem trazida de fora por um ignorante. Com certeza o povo de Estocolmo não tinha passado a noite orando e esperando o fim do mundo.
— Vovô Melker, foi assim que o senhor resolveu vir para o Brasil?
— Foi. Tomei a resolução nesse mesmo dia.
— Mas por que não escolheu morar em Estocolmo, que era muito mais perto?
— Porque eu estava cansado do frio, dos verões sem noite, dos invernos sem dia, da mesmice das coisas, de tudo. Eu queria movimento, aventura, cores e calores, frutas tropicais e animais exóticos.
— E a senhora, vovó Hedvig? Nunca sentiu saudade da sua vida lá em Vildablommorö?
— Só tenho saudade de uma coisa. Daquela campina verdinha, extensa, coberta de flores silvestres...

(Vovó disse isso sorrindo, olhando para o vovô com um brilho no olhar que não deixava a menor dúvida sobre o verdadeiro motivo da saudade...)
Imagem: http://www.masterfile.com

quarta-feira, 25 de março de 2015

Amor rima com estupor

Vou chegando no bar e vejo que o meu amigo já está lá.
— Desculpa, me atrasei.
— Não faz mal, sem problema.
— O que você está escrevendo aí?
— Nada importante. Quando não tenho nada pra fazer fico procurando rimas.
— Tipo amor com dor?
(Me arrependo depois de falar, porque ele está na fase de luto após um namoro que não deu certo. Mas ele responde serenamente.)
— Amor com dor é muito fácil. Estou escrevendo palavras que rimam com ilha.
(Começa a ler.)
— Quilha, bilha, filha, virilha, pilha, Sevilha, quadrilha, braguilha, sextilha, trilha, matilha, maravilha, guerrilha, gargantilha...
(Aqui faz uma pausa, levanta a cabeça e contempla o vazio.)
— Quando cheguei nessa palavra, gargantilha, eu não conseguia lembrar de mais nenhuma. Pensei: se ela ainda me ama, vou me lembrar de mais uma agora mesmo.
(Percebo que vai ser uma noite muito chata. O cara ainda está com ideia fixa na menina e não tem pudor em escancarar. Acho que vou ter uma cólica terrível, pedir desculpa e ir pra casa. Mas tenho que aguentar mais um pouco.)
— E aí, lembrou de alguma?
— Lembrei de baunilha.
— Que bom.
— Só tem um problema.
(Santa Paciência, Batman!)
— Que problema?
— Logo depois lembrei de um monte.
(Volta a ler.)
— Andarilha, manilha, pastilha, maltrapilha, redondilha, partilha, planilha, cartilha, presilha.
(Muito cedo ainda para ter a cólica, tenho que enrolar mais um pouco.)
— E isso não é bom? Qual é o problema?
— É que fiquei com uma dúvida. Lembrar não de uma, mas de um monte de palavras, significa que ela me ama muito, ou significa que eu ia lembrar mesmo que não tivesse pensado nela?
(Pela primeira vez me olha nos olhos. Expressão triste e aparvalhada. Tenho pena mas também tenho raiva. Como tu é imbecil, cara.)
— Aaaai, estou morrendo de cólica!
Imagem: http://mcclellandsforchrist.blogspot.com.br

domingo, 22 de março de 2015

Primeiro dia de aula

Fevereiro. Início do segundo colegial. Minha colega Helena veio correndo me encontrar assim que cruzei o portão da escola. Devia estar me esperando. Eram tempos sem internet; mesmo o telefone comum era raro nas residências. As notícias não circulavam com tanta rapidez, mas sempre se podia contar com a Helena, que sabia tudo de todos o tempo todo. Nem me cumprimentou apesar dos quase três meses de separação e foi perguntando afobada:
— Você já viu a Rafaela? Hein? Já viu?
— Qual das duas? A Cabelinho ou a Narizinho?
Pausa para uma nota explicativa.
Havia duas Rafaelas na nossa classe.
1) Rafaela Cabelinho: ela cortava o cabelo muito curto, quase careca, estilo bem masculino. Sentava-se na última carteira da fila da parede. Nunca fazia perguntas, nunca pedia pra ir ao banheiro, nunca nada. Só se levantava do lugar na hora do intervalo e na hora da saída. Suspeitava-se que era lésbica e que estava apaixonada pela professora de Português, dona Mirtes, a mais jovem e bonita da escola. A suspeita de tal paixão vinha do fato de que ninguém — na escola inteira — tirava notas tão altas em Português como a Cabelinho.
2) Rafaela Narizinho: essa menina era bonita, bem cuidada, participativa. Mas tinha o nariz encurvado, o que lhe causava complexo de feiura. Aquilo não era um defeito, era apenas herança genética devido à etnia da sua família. Mas ela não enxergava assim. Quando ninguém estava pensando em nariz, lá vinha ela com algum assunto relacionado a nariz. Principalmente ao próprio. Ô coisa chata.
Fim da nota explicativa.
Voltando ao assunto, Helena respondeu:
— A Narizinho! Você já viu?
— Não.
— Então se prepare! Você não imagina o que ela fez!
— Me conta aí!
— Ela fez plástica no nariz! Ficou ridículo!
E começou a rir tanto que as lágrimas escorriam. Comecei a rir também só de ver.
— Ridículo por quê? Ridículo por quê?
Fazendo grande esforço, ela interrompeu as gargalhadas:
— Sabe o triângulo retângulo? Aquele do ângulo reto, do teorema de Pitágoras?
— Sei, sei! O que tem a ver?
— O cirurgião plástico deve ser fã do Pitágoras! A parte de cima do nariz da Rafaela ficou igual a uma hipotenusa!
E voltou a gargalhar feito louca.
Descontado o exagero da minha colega, tive que concordar com a descrição. Parecia que o médico havia aplainado o encurvamento do nariz seguindo o traçado de uma régua. Ficou retinho, apontando pra baixo num ângulo de quarenta e cinco graus.
Foi muito duro ter de cumprimentar a Narizinho fazendo cara de admiração e dizer:
— Como você está bem, Rafaela! Sua plástica ficou ótima!
E a coitada sorrindo feliz, acreditando piamente. Enquanto isso a peste da Helena, de costas, não parava de tossir. Disfarçando a gargalhada, é claro.
Tudo isso aconteceu antes de entrarmos na classe. Mal sabia eu como aquele dia seria longo...
A primeira aula era de Biologia. Dona Valquíria, geralmente bem humorada, estava com cara de poucos amigos. Paramos de cochichar sobre a hipotenusa de Narizinho e ficamos bem quietos. Coisa esquisita: era o primeiro dia de aula, nem tinha dado tempo de aprontarmos nada, então por que a professora estava com aquela cara?
Dona Valquíria nos cumprimentou e disse que estava muito triste por ter de nos receber, no primeiro dia letivo, com uma notícia grave. Céus, pensei eu, será que ela vai embora da escola?
— Pessoal, lembram do Sérgio, aquele menino loirinho que foi transferido para cá no fim do ano passado?
Todo mundo ficou parado, na expectativa da notícia. Esse menino, o Sérgio, era muito bonito. Loiro, esbelto, olhos cor de mel. Não era da nossa classe, mas não passou despercebido pelas meninas. Pena que já tinha namorada lá na outra escola, segundo informações levantadas na época pela Helena. A professora continuou:
— Infelizmente o Sérgio faleceu.
Ela esperou a surpresa se consolidar, os comentários diminuírem, e prosseguiu:
— Foi um acidente. Está fazendo uma semana. A missa de sétimo dia é hoje.
Mais comentários. Acidente? Que acidente? Como assim?
— Ele foi mexer na arma do pai e ela disparou acidentalmente. Uma tragédia.
Mais comentários. Por que ele foi mexer na arma? Por que o pai dele tinha uma arma? Por que a arma não estava guardada fora de alcance?
— Não temos resposta para essas perguntas. Só nos resta orar por ele e dar apoio à família. A missa de sétimo dia é hoje, no final da tarde. Quem puder ir, faça essa caridade. Pela família, principalmente para dar aos pais o consolo de saberem que o filho tinha muitos amigos.
Nessa altura várias meninas já estavam chorando. Nenhum dos meninos chorou, porém mostravam semblantes muito sérios, até os mais gozadores da turma. Pude observar tudo isso por ser uma adolescente imatura, sem experiência de vida, capaz de analisar friamente a situação e incapaz de entender o motivo de se chorar por alguém praticamente desconhecido.
Dona Valquíria falou por muito tempo sobre a morte, segundo ela “esse fato inevitável da vida”, e quanto mais ela falava mais o pessoal se acalmava. Hoje reconheço como ela foi admirável nos ensinando, naquele momento delicado — e sem que percebêssemos — coisas importantes para o resto de nossas existências.
Não me lembro das outras aulas daquela manhã. Só sei que todos deixaram de lado a hipotenusa de Rafaela Narizinho. A morte do colega virou o único assunto. Mas Helena tinha que "enriquecer a discussão", como sempre. Na hora do intervalo ela veio com a história de que não havia sido acidente.
— Como assim, não foi acidente?
— Fiquei sabendo que ele brigou com a namorada, chegou em casa, foi direto pegar a arma de cima do guarda-roupa do pai, e se suicidou.
— Helena, pelo amor de Deus, como você pôde ter ficado sabendo de uma coisa dessa?
— Uma funcionária escutou os professores comentando, contou pra outra, e eu escutei a conversa das duas.
Nessa hora eu fiquei com muita, mas muita raiva da Helena. Podia ser mentira da tal funcionária. Tem gente que adora inventar história só pra aparecer. Mesmo que fosse verdade, não era coisa para se espalhar. Será que ela não percebia isso? Falei tudo com a maior calma possível mas com bastante ênfase. Ela respondeu que estava fora do seu alcance porque outras pessoas também tinham ouvido e já estavam espalhando. A partir daí, falsa ou verdadeira, foi a versão que predominou.
No fim da tarde fui à igreja. Cheguei atrasada e tive que sentar bem atrás. O lugar estava cheio de gente que eu não conhecia; deviam ser os parentes e também os colegas da outra escola. Consegui ver dona Valquíria lá na frente, junto com outros professores e a diretora.
Como foi triste aquela missa. Na hora em que o coral começou a cantar, a música era de uma tristeza tão profunda como eu jamais tinha ouvido. Quase todo mundo caiu em prantos. Ao perceber que eu também estava quase chorando, forcei-me a pensar que não conhecia o Sérgio, que o fato era lamentável mas não ia afetar a minha vida em nada, e que eu estava sendo mais uma vítima da estratégia maquiavélica daquele coral para obrigar todo mundo a chorar. Então olhei fixamente o lustre mais próximo para que a luz represasse e secasse alguma lágrima inoportuna. Fiquei assim um bom tempo, e dessa maneira pude assistir à missa bem quietinha, sem chorar nenhuma vez.
Quando acabou lá veio a Helena, que tinha me localizado na multidão. Percebi que ela também não havia chorado.
— Sabe quem estava aí? A namoradinha do Sérgio, coitada. Foi ela quem mais chorou a missa toda. A Rafaela Cabelinho sentou bem do lado da professora Mirtes, você viu? E adivinha quem também veio? A Rafaela Narizinho, com hipotenusa e tudo.
E escondeu o rosto no meu ombro como se chorasse. Mas aquilo não era choro.
Estava mesmo era rindo até não poder mais.

Imagem:http://bloodedkuni.deviantart.com


quinta-feira, 19 de março de 2015

A macarronada da dona Rosa

— Dona Rosa, vem cá. Me conte alguma coisa da sua vida, que eu quero escrever uma história pro meu blog.
— Uma história como? Comprida ou curta?
— De preferência curta, porque não quero gastar muito espaço na página.
— Uma história alegre ou triste?
— Conte uma história alegre porque o mundo já anda bem triste. Chega de tristeza.
— Tá bom. Uma história curta e alegre... Não precisa ser muito complicada, né?
— Não, quanto mais simples melhor. Vamos deixar de lado as complicações e as tristezas.
— Olha, o que eu me lembro agora, neste instante, é uma coisa que aconteceu quando eu era moça solteira, lá na casa do meu pai e da minha mãe. Se você quiser eu penso mais um pouco pra me lembrar de outras.
— Não precisa, dona Rosa, vai essa mesma.
— Então tá. Foi assim. Um dia o meu pai resolveu trocar o piso lá de casa, porque era um assoalho de madeira que já tava muito velho, cheio de cupim. Então ele chamou um pessoal que ele conhecia pra fazer o serviço. A minha mãe era meio louca, não gostava de gente estranha em casa, então ela falou que ia se trancar no quartinho do quintal e só ia sair quando os homens tivessem ido embora. Eu falei: “Mãe, o serviço vai levar o dia inteiro, como a senhora vai fazer pra se alimentar? Posso levar comida pra senhora?” Ela respondeu que não, que ia levar umas bolachas, uma garrafinha de chá, e não precisava de mais nada. Eu até acreditei, porque tinha dia que ela passava mesmo a bolacha e chá. Mas como ia fazer pra ir no banheiro? Ela disse: “Pode deixar que eu levo o penico comigo.”
— Cruz credo, dona Rosa! Trancada num quartinho, com chá, bolacha e penico?
— Eu falei que a minha mãe era meio louca, menina. Ela fazia coisas assim. Nem estranhei. Daí ela disse que já tinha comida feita pro almoço, era só pegar na geladeira. “Tem suficiente pra você e pro seu pai. Eu vou passar o dia com as bolachas, e de noite faço comida nova.” Concordei, né? Fazer o quê? Os trabalhadores chegaram às oito horas da manhã. Eram três. Eles falaram que até as seis da tarde o serviço ficava pronto, porque já tinham experiência e não perdiam tempo. E assim foi, eles trabalhavam bem depressa, não paravam pra nada. Quando chegou a hora do almoço eu perguntei: “Vocês trouxeram marmita ou vão sair pra comer?” Responderam que não iam fazer intervalo pro almoço porque não queriam perder tempo. “Mas vocês vão passar o dia trabalhando, sem parar nem pra comer?” Responderam que sim, que estavam acostumados. Mas eu não me conformei. Fui olhar na geladeira e vi que a comida era pouca, não dava pra cinco pessoas. Olhei pra cá, olhei pra lá, e pensei: “Não dá tempo de fazer comida complicada pra toda essa gente, vai demorar muito. Tenho que fazer alguma coisa rápida.” Então fui lá, peguei uns pacotes de macarrão e resolvi fazer macarronada. Mas macarronada sozinha era muita pobreza, eu precisava inventar alguma mistura. Resolvi caprichar no molho, porque assim ficava uma coisa gostosa e com sustância. Foi o que fiz. Refoguei cebola e alho no azeite, coloquei bastante tomate, bastante tempero, uns legumes e umas ervas. Despejei tudo numa panelona e chamei o pessoal. Eles ficaram meio sem jeito, mas eu disse: “Não vão me fazer essa desfeita, né? É só uma macarronada. Não demora nada pra comer. Depois o serviço vai render mais.” Então eles aceitaram e veio um de cada vez pra não interromper a labuta. Ainda coloquei na mesa o pouco de arroz, feijão e mistura que a minha mãe tinha deixado na geladeira, mas eles nem pegaram. Gostaram mesmo foi da macarronada. Eu vi muito bem que todos comeram com gosto, inclusive o meu pai, que era meio enjoado. Eu fui ficando pra trás, porque precisava prestar atenção se a comida estava suficiente pra todo mundo. Se não estivesse ia correr pra fritar um ovo ou qualquer coisa. Mas deu tudo certo, todo mundo comeu até se fartar, agradeceu, e no final ainda sobrou pra mim. Olha, vou te dizer, estava gostoso mesmo. Fui lavar a louça muito contente, e enquanto lavava fiquei pensando: “Que maravilha! Como é bom fazer comida e as pessoas aproveitarem tão bem.” Quando chegou as seis da tarde o serviço estava feito, a casa inteira de assoalho novo, tudo muito bonito. Foi um dia feliz na minha vida porque eu senti que tinha feito uma coisa boa, e descobri como adoro cuidar das pessoas. Pronto, menina, a história acabou.
— E a sua mãe, dona Rosa? Não houve nenhum problema com ela?
— Não. Ela saiu do quartinho, falou que nem tinha precisado usar o penico, e ainda aproveitou pra botar defeito no assoalho novo. Mas ela punha defeito em tudo, então a gente nem se admirou...
E dona Rosa deu uma risada feliz.


Imagem:http://www.tudogostoso.com.br

terça-feira, 17 de março de 2015

Abel e Floripes

Minha prima Patrícia é muito chata. Eu jamais escolheria uma menina como ela para ser minha amiga. Muito dramática e exagerada, meiguinha e sentimental até enjoar. Tem o costume idiota de só me chamar de “prima”.
Vira e mexe lá vem uma mensagem com uma oração anexada e a ameaça: “Mande para cinco pessoas. Três dias depois terá uma boa surpresa. Fulana ignorou esta mensagem e depois de três dias foi arrastada pela enxurrada. Nunca encontraram o corpo.”  Ou então coloca um vídeo de cachorrinho na rede social e pede: “Se achou esse cachorrinho fofo, compartilhe.” Como assim? O cachorrinho fofo está perdido, ou é pra compartilhar se eu o achei fofo? 
Um dia ela me liga toda espavorida:
Prima! Cê nem imagina o que aconteceu! Tô besta até agora!
Que ela estivesse besta eu nunca duvidaria, mas que fato a fez admitir essa verdade incontestável, isso eu nunca adivinharia mesmo.
“Que aconteceu, Patrícia?”
“Foi um livro que comprei. Descobri uma coisa incrível. Falar não adianta, vou levar aí pra te mostrar.”
Ai, meus deuses! Eu cheia de coisas para fazer, sem tempo nem paciência para futilidades. Mas sou frouxa demais para protestar, e meia hora depois ela está na minha frente me mostrando um livro antigo. “Histórias Românticas”, de Machado de Assis. Uma brochura envelhecida, capa amarelada com uma foto do autor. Abaixo do título as indicações:

W. M. Jackson Inc. - Editôres  
Rio de Janeiro, São Paulo, Pôrto Alegre, Recife. 

Assim mesmo: Editôres e Pôrto com acento circunflexo. Edição de 1957.
“Onde você arranjou isso, Patrícia?”
“Comprei num sebo. Quando vi que era do Machado de Assis, e “Histórias Românticas” ainda por cima, comprei na mesma hora. Só fui abrir em casa. Aí comecei a descobrir umas coisas intrigantes.”
Nem tentei fazer hipóteses. Sem tempo a perder com papo furado, perguntei que coisas eram essas. Ela pegou o livro da minha mão e foi apontando:
“Olha aqui, prima. Tá vendo essa dedicatória?”
Escritas com caneta-tinteiro, as letras caprichadas e desbotadas ainda deixavam ler:



Não vi nada de intrigante ali.
“O que tem de intrigante aqui, Patrícia?”
“Por enquanto nada. A esquisitice começa quando se descobre que a Floripes não leu o livro! Ela nem abriu e nem folheou! Recebeu o presente, guardou em algum lugar e nunca mais pegou! Aliás, o primeiro ser humano que abriu esse livro fui eu!”
“Mas como você sabe?”
“Eu sei porque tive que usar uma régua para cortar as páginas!”
“Como assim, criatura de Deus?”
“Coisa de publicações muito antigas! A encadernação era feita de um jeito que as folhas ficavam unidas duas a duas pela borda lateral, então a primeira pessoa que pegava para ler precisava separar as folhas. É só usar uma faca ou uma régua pequena e ir passando assim, de dentro pra fora.”
Ela ia dizendo e me mostrando. Realmente, as bordas não estavam retinhas, perfeitas, mas sim um pouquinho esfarrapadas. Patrícia continuava me explicando:
“Teve uma época em que era considerado anti-higiênico ler livro que já estava com as bordas cortadas.”
“Uai! Por quê?”
“Porque significava que outras pessoas já tinham lido e então ele podia estar contaminado.”
Fiquei um pouco admirada pela cultura livresca inútil da minha parenta.
“Caramba, que povo esquisito. Mas ainda não entendi qual é a coisa intrigante.”
“Veja você que o tal de Abel ofereceu um presente carinhoso para a prima Floripes e ela nem se incomodou em dar uma folheada. Devia ser uma ignorante, nem devia conhecer Machado de Assis.”
Eu estava incomodada com aquela perda de tempo e só por isso resolvi contrariar:
“Não necessariamente. Ela podia preferir poesia em vez de prosa. Ou podia conhecer o Machado mas não gostar. Ou então esse primo era um chato e ela estava irritada com ele.”
“Que seja, que seja. Mas me deixe continuar. Eu fui cortando as bordas e sabe o que encontrei escondidinho no meio de duas folhas ainda unidas?”
“Nem imagino.”
“Esta carta! Estava bem dobradinha, ela nunca foi lida.”
E me passou um papel amareladíssimo, com a mesma letra da dedicatória. Estava escrito:


Patrícia me observava com olhos ansiosos e deve ter notado que fui ficando cada vez mais espantada. Eu estava de queixo caído quando terminei.
“Esse Abel era um imbecil! Bem feito que ela não leu. Tomara que ele tenha se suicidado, um idiota a menos no mundo!”
Mas a prima meiguinha e romântica discordava.
“Como tem coragem de dizer isso, prima? Não vê que pode mesmo ter acontecido o pior?”
“Esse cara era covarde. Isso que ele fez foi uma tentativa de manipulação. Duvido que tenha cumprido a palavra.”
Mas ela estava melancólica:
“Sabe o que me deixa triste, prima? É que eu nunca vou saber o que aconteceu... Essa carta, que era para a Floripes ler, fui eu que li. Coitado do Abel. Pensou que tinha sido desprezado. Vai ver ela até gostava dele, mas era tímida. E no final, uma verdadeira tragédia...”
“Quem tá fazendo tragédia é você. Não deve ter acontecido nada. O manipulador imbecil não se matou, eles se casaram, tiveram muitos filhos e foram felizes para sempre.”
“Prima, você está dizendo isso só pra me consolar.”
Não era para consolar, era para ela ir embora logo e me deixar com os meus afazeres.
“Patrícia, tem um jeito de você descobrir o que aconteceu. É só fazer uma pesquisa nos jornais da época e ver se nessa data existe notícia de atropelamento por bonde. E se existir, qual o nome da vítima.”
Uma luz se acendeu nos olhos da prima! Ela me abraçou, me beijou, agradeceu e foi embora rapidinho.  Que alívio!
Dois dias se passaram em perfeita paz. No terceiro, logo de manhã, ela me liga.
“Prima, estive pesquisando sem parar. Até faltei na aula.”
Pausa. Eu tentando adivinhar o desfecho da história pelo tom da sua voz. Mas o tom era neutro.
“O que você descobriu, Patrícia?”
“Pesquisei tudo, prima. Todos os jornais daquela época que o acervo já foi digitalizado. Olhei tudo. Demorou.”
Pausa. Tom neutro. Eu começando a ficar nervosa.
“Mas qual foi o resultado da pesquisa, Patrícia?”
“Prima, que bom eu ter ido falar com você. Não sabe como me ajudou.”
Pausa. Eu francamente desesperada.
“Patrícia, pelo amor de Deus! O que você descobriu?”
Do outro lado da linha, silêncio. Uns dez segundos depois, o primeiro soluço.
"Você está chorando, Patrícia? Quer dizer que o Abel morreu?"
Cinco soluços depois:
"Morreeeeeeeeuuuu....."
Confesso que fiquei chateada. Tenho vergonha de confessar, mas fiquei.
"Não chore, Patrícia. Isso faz muito tempo."
"Prima, eu acho que sou a reencarnação da Floripes. É a única explicação para aquela carta ter vindo parar na minha mão."
"Nada a ver, é só coincidência."
Breve silêncio. Uma fungadela.
"Prima..."
(Dai-me paciência, Senhor!)
"Que é, Patrícia?"
"Me ajuda numa coisa? Depois não te peço mais nada, prometo."
(Já vi que é mais amolação que vem por aí.)
"O que você quer?"
"Me ajuda a localizar o túmulo do Abel?"