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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O príncipe e a bruxa

          Eu era um príncipe, por isso tinha uma fada madrinha. Depois do falecimento prematuro dos meus pais devido a uma enfermidade desconhecida, ela se tornou ainda mais presente na minha vida. Fazia visitas frequentes e me orientava em todas as dúvidas e decisões importantes. Ela sempre afirmava que o grande amor que a minha mãe sentia por mim havia se transferido inteiro para o coração dela. E que amor de mãe é de todos o maior e o mais puro.
          Um dia enamorei-me, e tive sorte: aquela mulher extraordinária retribuiu plenamente os meus sentimentos. Tornamo-nos um casal perfeito. Assim todos afirmavam e nós concordávamos. O casamento parecia ser o único caminho a seguir.
          Eu também tinha uma amiga a quem conhecia desde a adolescência. Uma amizade normal e tranquila, sem sobressaltos. Minha namorada não demonstrava ter nenhum ciúme dessa amiga, nem esta daquela. Por isso a minha vida era totalmente pacífica e eu só esperava terminar os estudos para propor casamento à amada do meu coração.
          Foi quando a fada madrinha apareceu com um semblante preocupado e disse ter algo importante a me dizer; não poderia deixar de fazer esse alerta mesmo se quisesse porque era sua obrigação como madrinha e fada. Segundo suas palavras, o meu casamento aconteceria em breve, isso estava certo, mas era preciso tomar cuidado com uma bruxa que estava tentando amarrar o meu destino ao dela. Se conseguisse, eu seria muito infeliz em sua companhia e só um amor verdadeiro seria capaz de me libertar de tal vínculo. Após isso, um ato de grande coragem de minha parte seria necessário para me restituir a felicidade, caso contrário eu jamais voltaria a ser feliz.
          Desde esse dia uma inquietação corrosiva me dominou. Quem seria a bruxa que me desejava tanto assim? Certamente uma pessoa conhecida e exímia dissimuladora. Se demonstrasse ser capaz de semelhante maldade, seria possível identificá-la e evitá-la. Então deveria ser alguém aparentando justamente o contrário.
          Tornei-me pensativo e taciturno. Olhava em volta tentando identificar a malévola criatura, mas não tinha como descobrir. Pedi ajuda à fada madrinha. Ela respondeu estar proibida de me orientar sobre esse assunto porque envolvia livre arbítrio, o qual não poderia ser influenciado. Senti-me totalmente desamparado. Dúvidas absurdas foram se infiltrando em meu coração. No dia em que a minha namorada me ofereceu um doce e eu tive medo de aceitá-lo, precisei reconhecer dolorosamente: era dela que eu mais suspeitava.
          Nos dias subsequentes, graças a uma profunda reflexão, fui descobrindo vários indícios para apoiar tal hipótese. Por exemplo, ela sempre se mostrava preocupada com a minha alimentação e era normal me oferecer frutas e doces, que eu comia com muito gosto. No entanto, a aparente prova de afeto poderia ser outra coisa. Quais encantamentos haveria naqueles alimentos? Seria essa a fonte da enorme atração que eu sentia por ela?
          Uma vez a surpreendi desenhando, e era o meu rosto que ela desenhava de memória. No momento achei bonito e fiquei feliz com o gesto. Mas, pensando bem, a que se prestaria tal desenho? A um feitiço de amarração?
          E aquele dia quando planejamos nos encontrar na ponte de pedra sobre o lago, e caiu uma terrível tempestade com muito vento, raios e trovões? Eu cheguei atrasado porque esperei a tempestade passar, mas ela estava lá, toda molhada, pálida e com frio, me esperando. Fiquei com muita pena e remorso, e abracei-a para aquecê-la. Considerei um milagre que nada de ruim houvesse acontecido. Agora, olhando sob outro ponto de vista, acho bem estranho que ela, tão pequena e frágil, não tivesse tido medo de ficar exposta ao perigo só para me esperar. Talvez tivesse certeza da sua invulnerabilidade...
          Quanto mais pensava, mais indícios encontrava. Os sonhos tão vívidos com ela, o fato de nunca esquecê-la em nenhum momento, o mistério de haver me apaixonado tão perdidamente por uma pessoa que nada tinha de excepcional além da sua personalidade, a qual poderia muito bem ser falsa...
          Qual a razão de ela não ter ciúmes da minha amiga? Isso não era normal. Eu podia passar horas conversando com essa amiga, até fazer passeios e sessões de estudo, e mesmo assim a minha namorada não perdia a serenidade. Tratava a outra com educação e com um sorriso em todas as ocasiões. Até porque a amiga era mais jovem e mais bonita, algum ciúme seria compreensível. Porém jamais houve qualquer demonstração. De onde vinha tanta confiança?
          O mais grave de tudo era o fato de que ela parecia adivinhar os meus pensamentos. Apenas um olhar era suficiente. Qual outra resposta para isso, senão bruxaria?
          Eu sofri muito, mas não sabia como me desvencilhar daquela situação. Principalmente porque uma parte de mim rejeitava todas essas conclusões e queria esquecer tudo, casar com ela e ser feliz. Porém a outra parte gritava alto dentro de minha mente, era impossível ignorar.
          Por que a fada madrinha se sentiu obrigada a me dar aquele aviso? Por que precisou envenenar a minha alma? Tão mais felizes são as pessoas comuns, a quem ninguém avisa de nada e assim podem viver plenamente o que têm de viver sem sofrimentos antecipados.
          Não sabendo o que fazer, não fiz nada. Fui me tornando cada vez mais indiferente à presença da minha namorada, cada vez mais frio e apático; nada do que ela fazia ou dizia modificava a minha atitude. Quando questionado, eu respondia que algo estranho estava acontecendo comigo, mas que ainda gostava dela da mesma forma. Era apenas uma fase, provavelmente uma longa fase, mas que certamente iria passar. Só não sabia quando.
          Ela esperou durante longos meses, sem me cobrar nem me recriminar. Eu a vi definhando dia a dia perante os meus olhos e senti uma sombra de culpa, mas não o suficiente para ter compaixão. Finalmente ela percebeu que era inútil esperar mais e foi embora em silêncio. Ao vê-la afastar-se, sabendo que nunca mais a veria, uma parte de mim (o coração) sofreu, mas a outra parte (a mente) ficou aliviada. Estava livre da bruxa.
          Quem me ajudou nessa fase tão conturbada foi a minha amiga. Soube me ouvir com muita paciência, me apoiou e me ajudou a superar as mágoas. A maior de todas era o resíduo de dúvida que eu ainda carregava: a de ter sido injusto e ter cometido um grande erro. Ela me convenceu de que eu havia agido acertadamente e que precisava esquecer tudo isso. Vida nova era a melhor atitude dali em diante. Não entendo muito bem como aconteceu, mas pouco tempo depois estávamos noivos.
          Tal como havia dito a fada madrinha, casei-me menos de um ano depois de suas previsões. Embora não sentisse pela amiga a paixão que havia sentido pela namorada, acreditei que um grande amor (o que a amiga sentia por mim) me havia libertado, exatamente como o previsto.
          Tudo estava perfeito. Então de onde vinha aquela infelicidade? De onde vinha aquele desassossego? E a repulsa que crescia mais e mais pela amiga agora esposa?
          Por que jurei amá-la para sempre, se não a amei nunca? Por que a pedi em casamento?
          Como pude deixar ir embora a única pessoa que me completava, que me fazia sentir plenamente vivo, cheio de alegria, de paz e de esperanças? Como pude me convencer de que ela me faria algum mal? Como pude me deixar manipular assim? Como pude me casar com uma bruxa?!
          Ao perceber tudo isso, imediatamente fui embora do castelo. Nenhuma bruxaria, por mais poderosa, seria capaz de me arrastar de volta. O amor verdadeiro (aquele que eu sentia pela minha namorada) me libertou.
          Abandonei tudo e todos, nunca mais quis voltar e nem tornar a ver ninguém. Odeio a bruxa, odeio a fada madrinha. Sinto-me traído e traidor.
          Minha madrinha envenenou a minha alma e depois negou ajuda; minha amiga aproveitou-se da situação e não disse a única coisa que eu precisava e queria ouvir: “siga o seu coração”. Quanto a mim, fui covarde e medroso, deixei-me manipular vergonhosamente.
          Até hoje, a segunda condição para a reconquista da felicidade, o ato de coragem que eu deveria praticar, não aconteceu. Nunca tive coragem de procurar a minha amada, e jamais terei. Como poderia me apresentar diante dela e pedir o seu perdão? Eu a julguei, condenei e apliquei a pena sem nunca lhe ter dado a chance de defesa.
          Consigo agora enxergar o quanto fui egoísta não pensando uma vez sequer, com seriedade, no seu sofrimento. Que deve ter sido imenso. Afinal, nunca me expliquei. Nunca disse adeus. Nunca a libertei para que ela pudesse procurar a felicidade com outra pessoa.
          Ainda assim, é melhor que tudo continue como está. Se eu aparecer diante dela e disser que a desprezei por acreditar que era uma bruxa, será mais um punhal no seu coração. Melhor será que me esqueça ou que me odeie. Eu viverei assim como mereço: infeliz para sempre.

Imagem: http://www.kevinalfredstrom.com

2 comentários:

Anônimo disse...

texto Maravilhoso

Zulmira Carvalheiro disse...

Obrigada! Muito gentil :-)